Prémio Nobel da Literatura
Doris Lessing, “dourado desencanto”...
A vencedora do prémio Nobel de Literatura 2007 abraçou causas ideológicas do século XX, com uma visão independente e desesperançada
Doris Lessing, “dourado desencanto”...
A vencedora do prémio Nobel de Literatura 2007 abraçou causas ideológicas do século XX, com uma visão independente e desesperançada
Para a Academia Sueca, Doris Lessing mereceu o prémio Nobel da Literatura 2007 “pela sua épica narrativa da experiência feminina, que com cepticismo, paixão e poder visionário, submeteu a exame uma civilização despida”.
A notoriedade de Doris Lessing surgiu, especialmente, com a sua novela El cuaderno dorado, de 1962, que foi saudada como um manifesto pelo movimento feminista durante os anos sessenta e setenta.
A partir daí, como escreve Robert Barnard, “Lessing foi elevada pelo movimento feminista dos anos setenta à categoria de guru (processo que ela mesma recusou e que lhe produziu bastante desconforto), mas o excessivo finca -pé que se fez acerca disso lesionou seriamente a sua carreira” (Breve história da literatura inglesa).
Autora de uma prolífica obra literária, Lessing não conseguiu converter-se numa escritora popular. O seu prestígio foi bastante minoritário, mantido em algumas ocasiões não pelo impacto literário das suas novelas mas antes pelo peso ideológico que podiam transmitir. E apesar de ser autora de umas quantas boas novelas e de dois interessantes livros de memórias, não conseguiu que alguma das suas obras se convertesse numa obrigatória referência literária, se exceptuarmos El cuaderno dorado, louvado mais por questões extraliterárias.
A experiência do colonialismo
Doris May Tayler nasceu em 1919 em Kirmansah, na antiga Pérsia (actualmente Irão), onde o seu pai estava destacado como militar. Em 1924 mudaram-se para a Rodésia do Sul (hoje Zimbabue). Doris viveu numa granja no norte do país e conheceu muito de perto a realidade racista do colonialismo. Nas suas obras denunciou o trabalho de tantos colonos brancos que perpetuaram um sistema classista e injusto, que ela conhecia em primeira-mão uma vez que fez parte dele. As suas denúncias foram tão fortes que em 1956, quando já residia na Grã-Bretanha, foi declarada “persona non grata” pelo governo da Rodésia.
Teve uma infância e adolescência muito conflituosas, com frequentes confrontos com a sua mãe. Aos 15 anos abandonou o lar. Nas suas memórias escreveu: “Estava a lutar pela minha vida contra a minha mãe”. Define assim os seus anos infantis: “Fui uma menina terrivelmente danada, terrivelmente neurótica, com uma sensibilidade e uma capacidade de sofrimento exageradas”.
Aos 19 anos contraiu matrimónio com um funcionário da Rodésia, Frank Charles, de quem teve dois filhos. Quatro anos depois abandonou o seu marido e seus filhos e casou-se, em 1944, com Gottfried Lessing, um judeu alemão refugiado na Rodésia que liderava naqueles anos um grupo de comunistas de ideias muito radicais. Voltou a divorciar-se em 1949 e nesse ano decidiu mudar-se para Londres, onde se instalou com o filho que teve com Gottfried.
A vocação da literatura
A partir daí decide dedicar-se inteiramente à literatura (se bem que não tivesse escrito nada, era uma autodidacta e voraz leitora), actividade que compagina com a sua militância política no partido comunista. Em 1950 publica a sua primeira novela, Canta la hierba, que supõe a sua irrupção no panorama literário britânico com uma polémica denúncia da situação política que se vivia na Rodésia. A sua novela seguinte é Martha Quest, a primeira de uma série que intitulará Filhos da Violência, e que terminará em 1969.
Em 1956 – ano do alastramento da revolução na Hungria pela URRS abandonou o partido comunista e desde então foi muito crítica com o comunismo e com os apoios que recebera naqueles anos, especialmente de intelectuais. A sua ideologia reflectia um progressismo ético onde não há lugar para a transcendência. Lessing era uma mulher muito independente e não hesitava em questionar ideias em voga, como as que passaram a ser moda pela geração de 68. Em 1962 publicou o seu livro mais famoso, El cuaderno dorado, novela protagonizada pela escritora Anna Wulf que, como dissemos, foi apropriada pela causa feminista pela descrição realista das dificuldades sexuais, psicológicas e materiais de uma mulher do seu tempo.
São muitas as novelas que publicou:
O costume de amar (1983),
Diário de uma boa vizinha (1983),
Se a velhice pudesse (1984),
A boa terrorista (1985),
Palavras leva-as o vento (1987),
O quinto filho (1988),
Histórias de Londres (1992)...
Os seus dois livros de memórias gozaram de maior popularidade que as suas novelas. Em 1994 publicou Dentro de mim, que retratava os seus anos passados na Pérsia e, sobretudo, em África; e em 1997 veio à luz Um passeio pela sombra, que se inicia com a sua chegada à capital inglesa em 1949. Também publicou um conjunto de novelas de ficção científica: Canopus en Argos: arquivos (1987-1982). A sua última novela, The Cleft, foi traduzida pela editorial Lumen no ano seguinte.
Recebeu muitos prémios literários: em Espanha, o Prémio Catalunha em 1999 e em 2001 o Príncipe de Astúrias das Letras. Apesar de ser premiada e valorizada, não conseguiu chegar ao grande público.
Um pessimismo constante
De entre os muitos temas que aparecem nas suas obras, alguns podem ter sido mais decisivos para a obtenção do Prémio Nobel: a discriminação racial em África, a pobreza, as desigualdades sociais, a política, os direitos da mulher, os conflitos pessoais do indivíduo, a dor, a morte, a solidão, o ecologismo...
Também denunciou as sombras que enegreceram os supostos avanços morais do progressismo mais radical. Lessing costuma abordar estes temas sem piedade, com uma visão forte e cruel, fazendo ostentação do seu pessimismo.
Existencialmente desencantada, as suas novelas, muitas apoiadas na sua experiência vital, pretendem ser uma radiografia dos sucessivos momentos decorridos pela cultura ocidental na segunda metade do século XX. Também continuou a utilizar literariamente a vida em África, como se pode verificar em Riso africano (1982), um singular livro de viagens, e nos seus três volumes de Contos Africanos.
Aceprensa, 17 de Outubro de 2007
Tradução e adaptação: Maria Helena Henriques Marques
Professora do Ensino Secundário
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