Depois do denominado “gigantesco retrocesso civilizacional” que significa a liberalização do aborto no espaço português, levado a efeito por uma minoria de 24% dos portugueses, em 11 de Fevereiro último, eis que se levantam novamente “vozes agoirentas”, “tenebrosas”, a sugerir a ampliação da cultura da morte, admitindo e/ou promovendo a eutanásia!
Onde estamos, e para onde nos querem encaminhar?!
A eutanásia, como todos bem sabemos, consiste numa prática através da qual se abrevia a vida de uma pessoa mais ou menos enferma, de maneira controlada e assistida por um especialista. Trata-se, no fundo, de uma “prática alternativa” aos imprescindíveis cuidados paliativos, que a dignidade da pessoa humana reclama e merece, como um dever grave de justiça, até ao momento sublime de uma morte natural que, essa sim, “é morrer com dignidade”...
A eutanásia representa uma complexa questão de bioética e de biodireito, uma vez que o primordial dever do Estado é a defesa e protecção da vida dos seus cidadãos.
A “eutanásia activa” concretiza-se nas acções que têm por objectivo pôr termo à vida, na medida em que é planeada e negociada entre o doente e o profissional que vai realizar o acto.
A “eutanásia passiva” por sua vez, não provoca deliberadamente a morte, no entanto, com o passar do tempo, conjuntamente com a interrupção de todos ou de alguns cuidados médicos, farmacológicos ou outros, o doente acaba por falecer. São canceladas todas e quaisquer acções que tenham por fim prolongar a vida. Não há por isso um acto que provoque a morte (tal como a eutanásia activa), mas também não há nenhum que a impeça.
Vários estudos têm vindo a divulgar que a maior parte das pessoas que solicitam os actos próprios da eutanásia activa não o faz pela dor física, mas por uma dor psicológica tratável. Isto demonstra o sentido de urgência da alteração do Serviço Nacional de Saúde, apetrechando-o de uma verdadeira e “humanizada” rede de cuidados paliativos, adequados, de forma personalizada, a cada situação.
É evidente que a maior parte ou a totalidade de alguns pedidos feitos pelos doentes poderiam e deveriam ser evitados, se existissem os necessários cuidados paliativos e não o “abandono” desses doentes terminais...
- A ficção da “decisão voluntária”
Sabemos todos por experiência real que o instinto mais forte da natureza humana é o instinto de conservação da vida.
E conhecemos actualmente que, na imensa maioria dos casos, o desejo de suicidar-se não é consequência de danos corporais e dores extremas, mas sim a expressão de sentir-se abandonados. A medicina paliativa tem feito tais progressos, que as dores são quase sempre controláveis, em qualquer estado de enfermidade e, felizmente, não atingem o umbral do insuportável. Na maior parte dos casos, também a dedicação intensiva daqueles que prestam cuidados modifica o desejo de suicídio, produzindo antes a consciencialização de que a “nossa vida” continua a ser importante... O médico dedicado representa junto do doente a afirmação de que a sua existência continua a ser útil e solidária.
É precisamente nas situações de fragilidade anímica que pode aparecer o desânimo do doente, momentâneo, compreensível, associado a manifestações de fuga do sofrimento, mas que, na realidade, não são conscientes nem livres e que podem ser – e são-no muitas vezes – especuladas de forma catastrófica, por alguns profissionais de saúde que vão admitindo e esperando, secretamente, poder levar a cabo esse “desejo” inconsistente.
A realidade da intolerância frente aos débeis foi adquirindo, ao longo da história, uma dolorosa forma social e institucionalizada de legalidade.
São muitas as vozes que se têm atrevido a manifestar, com firmeza, esses atropelos da dignidade humana. Atropelos que chegam por vezes a constituir uma autêntica cultura da morte que, em todas as épocas, se manifestou na morte legal de inocentes.
A história recente mostra-o com crueza no genocídio hebreu, nas limpezas étnicas de tantos conflitos bélicos, ou no mais subtil e solapado tirar a vida a seres humanos antes do seu nascimento, ou antes de atingirem a meta natural da morte.
São sempre os membros mais débeis da sociedade os que correm maior risco diante dessa perigosa manifestação de intolerância: as vítimas costumam ser os não nascidos (aborto e manipulações genéticas); as crianças (comércio de órgãos); os doentes e idosos (eutanásia); os pobres (abusivas imposições de controle demográfico); as minorias, os imigrantes e refugiados, etc.
Porque será que se tem imposto este erro no mundo em tantas ocasiões? De onde provém o seu atractivo?
O atractivo do erro não provém do mesmo erro, mas sim da “verdade” – grande ou pequena- que nele palpita. Por isso o erro é sempre perigoso!
E a frágil “verdade” que está subjacente na cultura da morte – a que esta deve ter emprestado o seu atractivo é a pequena ambição: (desfazer-se do ancião ou do enfermo incómodos, eliminar uma nova vida que nos parece inoportuna, melhorar a qualidade de vida dos que permanecemos com vida) que, satisfazendo, fugaz e brevemente, as paixões humanas, obscurece e bloqueia a inteligência, até torná-la incapaz de perceber o erro que comete.
É paradoxal, que a “tolerância” tenha sido tantas vezes a bandeira desfraldada por aqueles que impunham esses erros.
Mas, por detrás da defesa que fazem dos direitos e das liberdades, esconde-se sempre um brutal atropelo dos direitos e liberdades mais elementares.
Detrás de uma máscara de tolerância, esconde-se a mais cruel e macabra prova de intolerância: a de não deixar viver o inocente.
Diante das, felizmente, crescentes possibilidades da medicina, esperamos que a deontologia médica desenvolva critérios de normalidade, critérios do que em justiça é devido a cada pessoa e, precisamente, aos velhos e doentes, em dedicação, cuidados e assistência médica básica; assim como os critérios relacionados com a idade, as perspectivas de cura e as circunstâncias pessoais: “as pessoas devem ser tratadas como precisam de ser tratadas!”
“Os Centros para atenção e cuidado de doentes terminais”, e não o movimento a favor da eutanásia é a resposta, humanamente digna, à situação em que nos encontramos.
Quando o morrer não se compreende e não se cultiva como parte do viver, significa que já se iniciou e se enveredou pela civilização da morte.
Maria Helena H. Marques
Professora do Ensino Secundário